Luis Lima em “O ano da morte de Ricardo Reis”

Luis Lima em “O ano da morte de Ricardo Reis”

12 de outubro de 2020 0 Por Luis Antonio Lima
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Rodrigo Fonseca
Escreveu José Saramago (1922-2010) que nós, “espectadores da queda, nada fazemos, nem vamos fazer, para a deter e assistimos juntos” a vertigem derrubar a harmonia, como bem se testemunha no crepuscular “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, belíssimo inventário das cicatrizes da primeira metade do século XX, na ótica portuguesa. A maçã de Newton aqui – em uma história decalcada de um romance lançado pelo autor de “Memorial do Convento” em 1984 – é a crença de que um século nascido no mecanicismo, no imperialismo e na revolução pudesse dar certo pelas vias da serenidade e não dos extremos, como a época provou ser. Mas é em seu torvelinho de torções e acomodações, frente ao levante do hitlerismo nos países vizinhos e do estabelecimento de Salazar, que um espectro feito de lírica mente o que deveres sente para se sentir gente. Este é o Dr. Ricardo na concepção de seu diretor, João Botelho (no domínio pleno da suspensão da certeza, impondo mistério e tensão a cada corte), e do corpo no qual baixa, o de um Chico Diaz com ares de Jacques Tati. Reis não existe como pessoa, só como Pessoa, Fernando. É um heterônimo do poeta por trás de “Desassossego” e, como ele, busca no verso uma forma de ter voz. Mas em uma espécie de mockumentário literário desse sujeito tão caudaloso, Saramago (em quem Botelho foi buscar a argamassa de seu novo filme) usou um recurso do ilógico – quiçá do fantástico – e fez o Sr. Reis vir ao mundo da matéria, com carne, osso e capote, clamar por sentido. Por quê? Bom, na trama do livro de JS, bem roteirizada pelo próprio Botelho, ambientada na década de 1930, Pessoa morreu (em 1935)… então, longa vida ao Pessoa, ainda que em outros corpos. Com seu criador morto, Reis não tem outra alternativa que não vir ao mundo onde seu idealizador esfumaçou todo o nosso vazio existencial para, cá, brincar de gente. É mais ou menos como o Pinóquio de Collodi (1826-1890) fez. Só que, aqui, Chico Diaz vive um Pinóquio de grafite, em duplo prisma. Primeiro, por haver uma tonalidade de grafite na apolínea fotografia de João Ribeiro (o gigante da luz que nos deu planos de semeadura em “Cartas da Guerra”). Depois, por referência ao grafite do lápis que rascunhou as ideias de Reis em forma de estrofes. No filme, que chegará ao Brasil na 44ª Mostra de S. Paulo (22 de outubro a 4 de novembro), três autores conversam: Saramago, Pessoa… e o próprio Botelho. Este é um diretor autoral que, numa ótica brasileira, impressionou as telas com gemas como “Peregrinação” (2017) e “Tempos Difíceis” (1988), ao ser capaz de diluir um suposto classicismo com a doença essencial dos modernos, a ruptura. Ser moderno é romper com qualquer convenção que passe de carvão a diamante, endurecendo-se como convicção. Nos filmes de Botelho – seu “A Corte do Norte” é o mais sublime -, tudo o que existe de absoluto se faz relativo, nos personagens e, por vezes, na própria engenharia dos planos. Seu “Os Maias: Cenas da Vida Romântica” (2014), no qual Maria Flor deu ao écran uma atuação memorável, temos um bom exemplo de seu estilo. O que parece monolítico, harmonicamente direcionado pelos trilhos do épico ou do drama, escorre para o folhetim, para a comédia, para o absurdo. Nada parece estático em Botelho, nem as verdades de Portugal. Por isso, não espere verossimilhança da chegada de Ricardo Reis a seu país de origem, depois de uma longa estada no Brasil. Não há motivos que justifiquem como um personagem/coautor de poesias aparece entre os mortais. Também não espere qualquer justificativa para o fato de o fantasma de Pessoa andar entre nós, para se encontrar com sua cria e, qual o Grilo Falante de Collodi, orientá-lo em seus dilemas. “Morri sem perceber se é o poeta que se finge de homem ou se é o homem que se finge de poeta”, ouve-se no filme, em meio a uma pantomima de gestos de Chico Diaz em seu mais fino trabalho de corpo em quatro décadas de carreira.

Em seu apogeu como ator, coroado neste domingo no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro (com a conquista do troféu Grande Otelo de melhor coadjuvante por “Cine Holliúdy 2: A Chibata Sideral”), Chico constrói uma aquarela de gestos e olhares, de modo a traduzir a perplexidade de alguém que volta de longa para encontrar seu lar do avesso. A prova de que tudo está virado se apresenta já nas sequências iniciais, sob uma forte chuva, na qual se dá conta de que “há dois meses, os céus se desfazem em água”. Reis entra nesse ambiente com a fome de anteontem de quem só viveu no papel. Por isso, vai fazer da desmesura seu cartão de visitas, zanzando atrás do Amor, esse danado. O Amor, em “O Ano da Morte…”, é divido entre a austera figura da alta sociedade Marcenda (Victoria Guerra) e na dionisíaca representante do proletário chamada Lídia, uma criada de hotel a quem Catarina Wallenstein (numa intepretação regada a inteligência) cede múltiplos feitiços. Dizia Collodi que “consciência é aquela voz grave e baixinha que ninguém quer ouvir e esse é o problema do mundo de hoje”. Pessoa, vivido com elegância por Luís Lima Barreto, assume pra si a tarefa de ser a consciência de um Pinóquio da triste figura.

Pessoa, vivido com elegância por Luís Lima Barreto, assume pra si a tarefa de ser a consciência de um Pinóquio da triste figura.

Pessoa, vivido com elegância por Luís Lima Barreto, assume pra si a tarefa de ser a consciência de um Pinóquio da triste figura.

Pinóquio esse que nem de pau consegue ser: é um boneco de sílabas. E em sua aventura pelas veredas da carnalidade, numa prosopopeia de si mesmo, ele vai tropeçar numa afirmação de uma identidade nacionalista: “Ficamos com a consolação de serem portugueses a maior parte dos anjinhos do Céu”. Há de tropeçar em sua desatenção (medida pela relação com Lídia) e em seu despreparo para lidar com o Real. E ao nos darmos conta dessa dimensão, o filme de Botelho se desenha diante de nós como uma fábula. A fábula de um país que dominou a Terra no tempo em que o planeta era dos marinheiros. A fábula de uma metáfora que se insistiu em ser metonímia. A fábula do fingimento. Se fingir é, por essência e por excelência a tarefa do ator, Chico sai desse longa-metragem renovado. E nos renova com ele.